terça-feira, 15 de abril de 2014

ENTREVISTA - HAROLD BLOOM: 'Não existe leitor passivo'


O maior crítico deste tempo fala de sua obra e de leitura ativa: um duelo com a própria capacidade para extrair mais do livro
DAVID MOLINACOLABORAÇÃO PARA A FOLHA, EM NEW HAVEN (EUA)SIDNEY MOLINACRÍTICO DA FOLHA
Aos 83 anos, com saúde frágil, Harold Bloom, crítico literário mais famoso da atualidade, segue lecionando na Universidade de Yale (EUA).
Seus cursos sobre Shakespeare e literatura norte-americana só aceitam 12 alunos cada, já que, sobretudo no inverno, as aulas às vezes são transferidas para a sua casa.
No semana passada, Bloom conversou com a Folha sobre seu livro-testamento, "A Anatomia da Influência", lançado aqui no final de 2013.
Quarenta anos após a publicação de "A Angústia da Influência" (1973), obra que, para além da literatura, mudou o estudo das reverberações de um artista em outro, ele chega a uma fórmula mínima: "Influência é amor literário", aquilo que ao mesmo tempo afasta e aproxima autores fortes uns dos outros.
A entrevista ocorreu na casa de Bloom, com o som de "Concertos de Brandenburgo", de Bach, ao fundo. No cômodo ao lado, Jeanne, sua mulher, tentava fazer o computador funcionar com a ajuda de um aluno.
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Folha - Em "A Anatomia da Influência" você define influência como "amor literário, temperado pela defesa". É possível dizer que sua ênfase nos anos 1970 estava em "defesa", e agora em "amor literário"?
Harold Bloom - Quando escrevi "A Angústia da Influência", havia a crença universal de que toda influência poética era um processo benigno. Por isso era necessário enfatizar o negativo, o que foi mal compreendido. Este livro é diferente. É uma suma pessoal feita em uma idade em que a gente sabe que pode morrer a qualquer hora, mas ainda tem tempo de resumir para si o que acredita ser a sua contribuição.


O que é "amor literário"?
Você está apaixonado? Mesma coisa. Incluindo inevitáveis ambivalências, dificuldades, incompreensões.


Seu curso sobre Shakespeare tem seis aulas sobre "Rei Lear". Como é analisar Lear depois dos 80?
As duas pessoas mais velhas da obra de Shakespeare são sir John Falstaff e rei Lear, ambos com mais de 80. Caminho para completar 84. Sempre adorei Falstaff.
Lear é o maior representante em toda a literatura ocidental da autoridade paterna, que a maioria das sociedades confere às figuras do rei e de Deus. A melhor coisa dita na peça sobre Lear é que "ele sempre se conheceu muito pouco". Não há autoconhecimento, e esse é um erro que os críticos que o idealizam cometem.


Como vê a relação da leitura com as tecnologias visuais?
É difícil. É mais difícil ainda para a sua geração se desligar do visual do que para mim e Jeanne [mulher de Bloom]. Nada disso existia quando éramos jovens. Quer dizer, o cinema sim, mas a TV mal existia, não me lembro. E o computador, claro, muito mais importante que a tela de cinema ou da TV e que usurpou o lugar de ambas, não existia de forma generalizada até 25 anos atrás. Por isso encorajo estudantes a lerem em voz alta, a irem a um lugar onde possam ficar sozinhos e ler em voz alta. Ler de verdade, ler Shakespeare (1564-1616), ou os poetas Wordsworth (1770-1850, inglês), ou Wallace Stevens (1879-1955, americano) ou Hart Crane (1899-1932, americano), algum escritor difícil, é um processo extremamente ativo no qual você tem que lutar com todas as suas faculdades, mesmo se não puder compreender tudo, para tirar mais daquilo.
Já com o visual, mesmo que exista algo como olhar de forma reativa (não que eu saiba muito sobre isso, não sou guiado pelo visual, sou orientado puramente pelo verbal), com o visual é muito fácil relaxar e ser passivo. Você não pode ler passivamente.


Como vê o governo Obama?
Tudo indica que Obama ampliou o programa de vigilância dos EUA. Nesse tema, se situa à direita do idiota George Bush. Um imenso desapontamento.


Sua teoria da influência enfrentou resistências de formalistas, de especialistas em grupos marginalizados e dos que interpretam politicamente seu foco no combate entre autores. Como trata isso hoje?
Se respondesse a todas as provocações, não seria mais capaz de ler, escrever ou ensinar. A notoriedade tem o seu aspecto positivo, mas você perde tanto quanto obtém dela. Hoje não respondo mais. É bobagem acreditar que você pode beneficiar grupos insultados, explorados ou desfavorecidos lendo e ensinando a ler obras menores só por causa da pigmentação da pele, orientação sexual, gênero ou origem étnica. Os departamentos de língua e literatura inglesa têm só 20% do número de alunos que tinham há 30 anos. Ocasionalmente vejo a lista dos cursos e sinto um calafrio. Vejo pessoas que não passam de vendedores de lixo sendo contratadas. Mas no máximo em cinco anos estarei morto ou incapacitado. E muita gente respirará aliviada.

Livro analisa 'amor literário' em canto de cisne virtuoso
SIDNEY MOLINADO CRÍTICO DA FOLHA
"Por que a poesia é poesia e não outra coisa, seja história, ideologia, política ou psicologia?" Em "A Anatomia da Influência" (2011), lançado no Brasil no ano passado, o crítico literário Harold Bloom volta ao tema que o colocou no centro dos estudos literários nos anos 1970: "É meu canto do cisne", afirma.
Para Bloom, o pensamento poético é sempre uma forma de memória, a angústia da influência que ao mesmo tempo move e paralisa o jovem autor diante da força dos precursores.
Nascida no embate com os formalistas, sua teoria exercitava um caleidoscópio cabalístico de tropos e defesas psíquicas, um "mapa da desleitura" que desatou a influência do mero estudo das fontes e alusões.
A definição madura evita essas categorias: "No labirinto deste livro, elas não podem fornecer um fio desejável, já que apenas Shakespeare e Whitman conseguem fazê-lo".
No novo livro, a influência é comprimida nas ambivalências da expressão "amor literário". A obra não um tratado teórico, já que, antes de tudo, comenta obras específicas de cerca de 30 autores.
Além de Shakespeare e Whitman, estão ali Milton, Joyce, os herdeiros de Shelley e nomes da geração do próprio Bloom. Análises de Paul Valéry e Leopardi temperam a presença maciça dos autores de língua inglesa.
Não é fácil traduzir um autor cujo virtuosismo faz dos poetas ao mesmo tempo causa e consequência de sua própria voz. Sua prosa reverbera uma apreciação musical dos textos, em um fio tênue que não se sobrepõe à "poesia da poesia". A versão brasileira tem o cuidado de oferecer o original das traduções.
Incomodam apenas duas opções terminológicas que já haviam sido bem resolvidas em português: "relações revisionais" ("revisionary ratios"), ao invés de "razões revisionárias"; e, sobretudo, "má avaliação" ("misprision"), ao invés de "desapropriação" e "expropriação".
Em um dos capítulos mais originais, Harold Bloom analisa a influência de uma mente sobre si mesma, a capacidade da literatura criar formas de vida; afinal, "se Falstaff e Hamlet são ilusórios, então o que somos eu e você?".

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