quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Dois cavalos e uma revolução

Clássico de Heinrich von Kleist (1777-1811) joga com as ambiguidades da vingança e da justiça
Quem aprecia o tema da vingança não há de ficar à míngua nestes dias. Além de "Relatos Selvagens", filme argentino que comentei na semana passada, está nas livrarias uma clássica e curta narrativa alemã, capaz de atender bem à demanda dos interessados.
Trata-se de "Michael Kohlhaas", romance escrito em 1810 e lançado agora pela editora Civilização Brasileira. O livro está entre as obras-primas de Heinrich von Kleist (1777-1811).
Apesar de escrever em pleno período romântico, Kleist impressiona pelo que já existe de kafkiano --de aflitivo, de labiríntico, de obstaculizado-- em seu universo. "Michael Kohlhaas" narra com estilo imperturbável, e não sei se humorístico, um complicadíssimo processo judicial ocorrido na Alemanha do século 16.
As autoridades de dois Estados independentes --Saxônia e Brandemburgo--, e mais tarde o próprio imperador do Sacro Império Romano-Germânico, para não falar de Martinho Lutero, vão sendo envolvidos na querela jurídica iniciada por Michael Kohlhaas, um mero vendedor de cavalos.
Kohlhaas era "um modelo de bom cidadão", diz o autor no início da história. "O sentimento de justiça fez dele, porém, um bandoleiro e um assassino."
Tudo começa quando ele quer atravessar, com sua tropa de cavalos, a propriedade do fidalgo Wenzel von Tronka. Sem aviso prévio, exigem-lhe pedágios, papéis, garantias.
Disposto à obediência, Kohlhaas concorda em deixar dois de seus cavalos, e um ajudante, no castelo do fidalgo, enquanto parte em busca da papelada. Quando volta, os animais e o ajudante estão quase mortos, tal o tratamento a que foram submetidos pelos sequazes de Von Tronka.
Kohlhaas quer uma reparação. A justiça tarda; o caso cai nas mãos de parentes do fidalgo; a mulher do tropeiro faz uma viagem para apelar às instâncias superiores; é tratada com brutalidade por soldados e morre em poucos dias. Não há nada a fazer.
Nada? Kohlhaas decide vingar-se. Reúne um grupo armado e parte em busca do fidalgo. O que se segue é uma verdadeira insurreição popular, com castelos incendiados, cidades destruídas e inúmeras mortes pelo caminho.
Seria tudo simples, não fosse o gosto de Kleist para explorar a ambiguidade política e moral da situação. O grande Martinho Lutero começa condenando, num escrito inflamado, a tentativa de Kohlhaas; não se pode fazer justiça com as próprias mãos. Convence-se, todavia, do contrário.
Devido a diversas rivalidades internas, ou a concepções menos classistas de justiça, surgem defensores de Kohlhaas entre a própria nobreza alemã. Ele é anistiado --ou será que não foi?
Há passagens que exigem do leitor atenção redobrada, tal o embrulho de príncipes e conselheiros de Estado tratando do assunto.
Quando a justiça é feita, nas últimas páginas do livro, o certo e o errado se compactam insoluvelmente. E a vingança?
Esta aparece num ato bizarro, que não pode ser contado aqui. Admite até uma interpretação sobrenatural, mas isso interessa menos do que o fato de envolver a profecia misteriosa de uma cigana.
Importa prever qual a duração e a descendência de um ramo da nobreza --e nesse enigma talvez esteja a chave para se entender todo o romance.
A revolta de um comerciante de cavalos do século 16 estaria servindo, para Kleist, como símbolo dos conflitos de seu próprio tempo. A memória da Revolução Francesa não podia deixar de estar presente na Alemanha de 1810. Mas, naquele território dividido em incontáveis Estados autônomos, a luta entre nobres e burgueses não se faria com a clareza sangrenta do país vizinho.
É um paradoxo. A confiança na autoridade estatal parece ser maior quanto mais esta é dividida. Se tudo se resolve pelo decreto único de um poder central, eventuais injustiças tendem a provocar uma irrupção violenta; quando são muitas as instâncias, e confuso o sistema, há mais chance de contemporização.
Se esta interpretação se sustenta, Kleist parece deixar em aberto o destino político alemão no final de seu romance. Vingança e justiça, revolta e repressão, poder popular e poder oligárquico se misturam --e triunfam-- no mesmo desfecho.
A ambiguidade é bem moderna; Marcelo Backes a reproduz em sua tradução, usando tons alternados de coloquialismo e formalidade. Quanto a traduzir a realidade de Kleist para a situação brasileira de hoje, aí fica mais difícil, e não sei onde iríamos parar. MARCELO COELHO .Folha, 26.11.2014.

www.abraao.com

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Carolina de Jesus viveu do caos ao caos


Escritora mineira conheceu glória literária e morreu esquecida em sítio em Parelheiros, após passagem por Santana


Jornalista Audálio Dantas a descobriu quando foi ao Canindé fazer uma reportagem sobre a favela
DE SÃO PAULO
Carolina Maria de Jesus nasceu em 1914, em Sacramento, interior de Minas, numa família de negros analfabetos. Chegou a ser presa, acusada de roubar 100 mil-réis de um padre. No raiar de 1947, aportou na Estação da Luz, em São Paulo, onde iniciaria uma caminhada de percalços até se tornar escritora best-seller.
Logo que se instalou na capital paulista conseguiu emprego na casa do médico Euryclides de Jesus Zerbini, precursor da cirurgia do coração no Brasil, que a deixava usufruir de sua biblioteca nos dias de folga. Com apenas dois anos de estudo, adorava ler.
Metida e indisciplinada, como a definem os que conviveram com ela, pulou de emprego em emprego até engravidar de João José, em 1948. Teria mais dois filhos: em 1949, nasceu José Carlos, e, em 1953, Vera Eunice.
Grávida e sem trabalho, foi viver na nascente favela do Canindé, nos arredores do recém-construído estádio da Portuguesa. Levantou um barraco de um cômodo e sobrevivia catando e vendendo papel.
Em 1958, o destino lhe sorriu, com todos os dentes. Apareceu na favela o jornalista Audálio Dantas, da extinta "Folha da Noite". Estava ali para escrever uma reportagem.
"Olhava uns marmanjos brincando no playground quando apareceu uma mulher esculachando, dizendo que se eles não caíssem fora, ia botá-los no livro", lembra Dantas. "Fui perguntar qual livro. Como era esperta, logo viu uma oportunidade."
Carolina de Jesus arrastou o repórter para o seu barraco, onde lhe mostrou uma pilha de cadernos. Entre eles, um diário no qual anotava acontecimentos do dia a dia na favela, iniciado em 15/7/1955.
"Me chamou a atenção. O texto tinha uma forma de narrar próxima da poesia", conta Dantas. "Voltei para a redação e publicamos trechos."
A edição da "Folha da Noite" de 9 de maio de 1958 repercutiu em vários outros jornais e revistas do país. Dois anos depois, a editora Francisco Alves publicou o diário no livro "Quarto de Despejo".
A primeira edição saiu com 30 mil exemplares. Segundo a pesquisadora Raffaella Fernandez, da Unicamp, a obra foi reimpressa sete vezes em 1960. No total, vendeu 80 mil exemplares. "Quarto de Despejo" foi traduzido para 14 línguas em 20 países. "No lançamento em São Paulo, até o Pelé foi", conta Dantas.
Carolina de Jesus virou celebridade e se mudou para um sobrado de três andares no bairro de Santana. Lançou mais três livros: "Casa de Alvenaria", "Pedaços de Fome" e "Provérbios". Postumamente, em 1982, foi lançado na França, "Diário de Bitita", que chegou ao Brasil pela Nova Fronteira, em 1986.
BRIGAS
"Carolina não conseguiu viver em Santana. Brigou com todos os vizinhos, que a receberam mal", lembra Dantas. "Não era uma pessoa comum. Nunca teve alma de pobre favelada, queria brilhar."
De Santana, a escritora migrou para um sítio em Parelheiros, onde começou a definhar no mundo literário até sumir.
"Passada a novidade, Carolina foi rejeitada por todos. Pela direita, por expor a miséria. Pela esquerda, porque não queria saber de luta social", diz Joel Rufino, autor de "Carolina de Jesus "" Uma Escritora Improvável" (Garamond).
Desse tempo, a filha Vera Eunice de Jesus Lima guarda as piores memórias: "Passamos outro tipo de fome, pois conhecemos a fartura. Tinha 13 anos quando minha mãe voltou a catar lixo".
Nunca parou de escrever, até a morte, em 1977, em decorrência de crise de asma.
"Quando conseguia dinheiro, ela voltava para casa feliz, com o pão, e escrevia noite adentro. Dizia que a noite lhe trazia as ideias", diz a filha. Folha, 20.11.2014.
www.abraao.com

www.abraao.com