quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Livro reúne peças de Consuelo de Castro Dramaturga, que há 15 anos não lança novo texto, diz que só produz quando é certo que o trabalho será encenado

Em 'Três Histórias de Amor e Fúria', autora de 'Prova de Fogo' (1968) dá espaço a obras dos anos 1980 e 1990
GUSTAVO FIORATTIDE SÃO PAULO
"Não sou mulher de gaveta", diz Consuelo de Castro, dramaturga de raízes combativas e uma extensa carreira embebida em situações de repressão política. Ela lança, no sábado, o livro "Três Histórias de Amor e Fúria", no Espaço Parlapatões, em SP.
Agitada e sempre empunhando um cigarro que demora 15 minutos para acender e outros dois para fumar (foram três em uma hora e meia de entrevista em seu flat próximo à avenida Paulista), a autora conta que só produz se é para ver suas peças no palco ou publicadas.
A aflição com a possibilidade de ver os textos guardados resultou num hiato de 15 anos --período em que não produziu nada que tenha vindo a público.
"Três Histórias de Amor e Fúria" é composto de três peças já encenadas, apresentadas em cronologia decrescente: "Only You" (1998), "Memórias do Mar Aberto - Medeia Conta Sua História" (1997) e "Mel de Pedra" (1985).
Consuelo explica a pausa: "Vem aquela explosão, você escreve... E depois o texto fica na gaveta... Pois eu abortei ideias para não passar por esse tipo de impasse de novo", diz ela, criticando, de quebra, colegas que encomendaram textos e sumiram do mapa sem encená-los.
Em "Only You", sua última peça levada ao palco (por José Renato, em 2001, e por Bibi Ferreira, em 2002), um autor de novelas recebe a visita de uma mulher enigmática e embarca num jogo para desvendar sua identidade.
Em "Memórias do Mar Aberto", Consuelo relê a tragédia de Medeia, que mata os filhos, "só que na minha versão ela o faz por um erro de estratégia, e não por vingança", diz a autora. Em "Mel de Pedra", uma bailarina e uma antropóloga abastecem angústias determinadas por esperas "becketianas".
São, diz Consuelo, obras preferidas de um determinado período em que seu trabalho se impregnou da polaridade referida no título do livro: "O amor e a fúria estão ali, nessas histórias". "Não vou dizer que há uma evolução entre os trabalhos porque seria muito pretensioso dizer que eu própria evoluí", diz.
Em sua fase mais combativa, até os anos 1980, ela não poupava esforços para provocar os militares. Foi assim com "Prova de Fogo" (1968), seu primeiro texto, censurado.
Consuelo conta que está disposta a se dedicar novamente aos palcos. Há pouco mais de um ano, ela escreveu uma nova peça a partir de uma pesquisa sobre a vida da farmacêutica cearense Maria da Penha, que foi baleada e torturada pelo marido e lutou para aprovar a lei que endureceu a punição a casos de violência doméstica.
Só não quer produzir o espetáculo. "Quando resolvi produzir, percebi que não sou do ramo e quebrei a cara. Saí dessa experiência esgotada."

Onde está William? 450 anos após o nascimento de Shakespeare, artistas desvendam a influência do autor na música, nas artes visuais, na TV e no próprio teatro

GUSTAVO FIORATTIDE SÃO PAULO
A brincadeira é a seguinte: identificar quais criações contemporâneas estão impregnadas pela obra de William Shakespeare, 450 anos depois do nascimento do autor inglês, comemorados mundo afora no mês de abril.
Difícil não cair nos casos óbvios, como "Exit Music", canção da banda Radiohead que fala de Romeu e Julieta. Mas dá para arriscar menções mais ousadas, como um possível eco de Lady Macbeth em "House of Cards".
A convite da Folha, autores teatrais, diretores e um roqueiro infiltrado entre eles (o cantor e compositor Supla) vasculharam suas memórias em busca de associações entre a produção contemporânea e Shakespeare.
"Hamlet está em todos nós. É um arquétipo da melhor espécie de duvidar da existência", diz o diretor Gerald Thomas. "É um carinha travesso, avesso aos sentidos do establishment: era um punk rocker da sua época, era o Neil Young do seu tempo."
O jogo acompanha uma onda de peças comemorativas que, no Brasil, já tem exemplares em cartaz.
Duas montagens estrearam no Rio: "Sonho de uma Noite de Verão", com adaptação de Walcyr Carrasco (autor das novelas "Amor à Vida" e "O Cravo e a Rosa"), na sede da Cia. de Teatro Contemporâneo, e "Ricardo 3º", com Gustavo Gasparani e Sergio Módena, no Espaço Sesc.
Também há Shakespeare na peça "Última Sessão", em que trechos de vários textos do inglês estão por todo o cenário. A peça entra em cartaz hoje, com Laura Cardoso, em São Paulo. Também na cidade, uma versão de "Romeu e Julieta", com direção de Ivan Feijó, deve estrear em abril.

CRIAÇÕES CONTEMPORÂNEAS

1. NO VALE A PENA VER DE NOVO
Walcyr Carrasco, o autor da novela global "O Cravo e a Rosa" --cuja reexibição chega a seu capítulo final amanhã-- conta que criou seus protagonistas a partir de uma releitura de "A Megera Domada", comédia de Shakespeare. Os nomes dos personagens são iguais aos do original: Catarina, uma mulher que não se deixa subjugar pelos homens, e seu par romântico, Petruchio.


2. NA VOZ DE NEIL YOUNG
O diretor Gerald Thomas cita Young como uma possível versão de Hamlet, o príncipe dinamarquês que, reagindo à morte do pai, expõe a podridão por trás do mundo que o cerca. "Young é um grunge antes dos grunges e se mantém fiel aos seus princípios", diz Thomas. A música "Keep on Rockin' in the Free World", para ele, quer dizer "não se intimidem, lutem por suas convicções". Thomas lembra ainda que o filme "Ran", de Akira Kurosawa (1910-98), tem como base a peça "Rei Lear", sobre um rei dividindo suas terras entre as filhas.


3. NOS SERIADOS AMERICANOS
Claire Underwood (a atriz Robin Wright), mulher do protagonista do seriado "House of Cards", é uma espécie de Lady Macbeth, sempre influenciando o marido inescrupuloso em suas decisões profissionais, considera o dramaturgo Sérgio Roveri. "Ela trama tudo para o marido conquistar o poder", explica.


4. EM GUIMARÃES ROSA
Há uma relação entre "Rei Lear" e o conto "Nada e a Nossa Condição", do escritor mineiro, diz a atriz Giulia Gam. Ambas as histórias têm como centro um personagem velho que, na iminência da morte, começa a pensar na partilha de sua propriedade entre as filhas.


5. EM BECKETT
"Rei Lear" de novo... Muita gente já fez essa mesma relação, entre o protagonista da obra de Shakespeare e Hamm, personagem também sujeito à decrepitude e à crise diante do fim na peça "Fim de Partida", de Beckett (1906-89), como bem lembra o autor Samir Yazbek.


6. EM BATMAN
Para Claudia Shapira, diretora do grupo Bartolomeu de Depoimentos, que investiga intersecções entre teatro e arte de rua, Batman talvez tenha uma relação hamletiana com seu pai fantasma, além de usar uma "máscara da loucura" para desvendar "algo de podre".


7. NA NOVELA DAS NOVE
Félix, vilão da novela global "Amor à Vida", pode muito bem ter encarnado um Iago, de "Otelo". Ele é invejoso e "faz suas escolhas atropelando qualquer valor moral", diz Marici Salomão, dramaturga e diretora da SP Escola de Teatro. Ela também vê Shakespeare nas "aterrorizantes imagens de personalidades históricas borradas de subjetividade pelas mãos de Francis Bacon".


8. NO MOVIMENTO PUNK
O roqueiro Supla conta que assistiu a um show de Bowie em 1983, na Alemanha, em que o cantor, empunhando um crânio, proferiu a frase mais conhecida do príncipe: "To be or not to be". Também lhe vem à mente o documentário "O Lixo e a Fúria", sobre a banda Sex Pistols: em uma cena, o músico Johnny Rotten conta que contrariou um professor quando ele disse que todo mundo deveria conhecer a obra de Shakespeare.


9. NA MELANCOLIA RUSSA
A diretora carioca Christiane Jatahy associa Solioni, personagem secundário da peça "As Três Irmãs", de Tchékhov, a Lady Macbeth. "Ele passa a peça toda perfumando as mãos, quase como prenúncio do assassinato que vai cometer no final da peça, assim como Lady Macbeth as lava para tirar o sangue", compara.


10. NOS MUSICAIS
No teatro musical também há referências ao bardo. Duas das mais famosas: "West Side Story" é uma versão de "Romeu e Julieta", como lembra Claudia Shapira. E "O Rei Leão", em cartaz em São Paulo, também tem bastante da peça "Hamlet". Mesmo sendo uma obra para crianças, não dispensa a cena de um assassinato cruel, em que o rei é vítima de seu próprio irmão, tio do personagem central.
    Fonte: Folha, 16.01.2014.