quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Onde está William? 450 anos após o nascimento de Shakespeare, artistas desvendam a influência do autor na música, nas artes visuais, na TV e no próprio teatro

GUSTAVO FIORATTIDE SÃO PAULO
A brincadeira é a seguinte: identificar quais criações contemporâneas estão impregnadas pela obra de William Shakespeare, 450 anos depois do nascimento do autor inglês, comemorados mundo afora no mês de abril.
Difícil não cair nos casos óbvios, como "Exit Music", canção da banda Radiohead que fala de Romeu e Julieta. Mas dá para arriscar menções mais ousadas, como um possível eco de Lady Macbeth em "House of Cards".
A convite da Folha, autores teatrais, diretores e um roqueiro infiltrado entre eles (o cantor e compositor Supla) vasculharam suas memórias em busca de associações entre a produção contemporânea e Shakespeare.
"Hamlet está em todos nós. É um arquétipo da melhor espécie de duvidar da existência", diz o diretor Gerald Thomas. "É um carinha travesso, avesso aos sentidos do establishment: era um punk rocker da sua época, era o Neil Young do seu tempo."
O jogo acompanha uma onda de peças comemorativas que, no Brasil, já tem exemplares em cartaz.
Duas montagens estrearam no Rio: "Sonho de uma Noite de Verão", com adaptação de Walcyr Carrasco (autor das novelas "Amor à Vida" e "O Cravo e a Rosa"), na sede da Cia. de Teatro Contemporâneo, e "Ricardo 3º", com Gustavo Gasparani e Sergio Módena, no Espaço Sesc.
Também há Shakespeare na peça "Última Sessão", em que trechos de vários textos do inglês estão por todo o cenário. A peça entra em cartaz hoje, com Laura Cardoso, em São Paulo. Também na cidade, uma versão de "Romeu e Julieta", com direção de Ivan Feijó, deve estrear em abril.

CRIAÇÕES CONTEMPORÂNEAS

1. NO VALE A PENA VER DE NOVO
Walcyr Carrasco, o autor da novela global "O Cravo e a Rosa" --cuja reexibição chega a seu capítulo final amanhã-- conta que criou seus protagonistas a partir de uma releitura de "A Megera Domada", comédia de Shakespeare. Os nomes dos personagens são iguais aos do original: Catarina, uma mulher que não se deixa subjugar pelos homens, e seu par romântico, Petruchio.


2. NA VOZ DE NEIL YOUNG
O diretor Gerald Thomas cita Young como uma possível versão de Hamlet, o príncipe dinamarquês que, reagindo à morte do pai, expõe a podridão por trás do mundo que o cerca. "Young é um grunge antes dos grunges e se mantém fiel aos seus princípios", diz Thomas. A música "Keep on Rockin' in the Free World", para ele, quer dizer "não se intimidem, lutem por suas convicções". Thomas lembra ainda que o filme "Ran", de Akira Kurosawa (1910-98), tem como base a peça "Rei Lear", sobre um rei dividindo suas terras entre as filhas.


3. NOS SERIADOS AMERICANOS
Claire Underwood (a atriz Robin Wright), mulher do protagonista do seriado "House of Cards", é uma espécie de Lady Macbeth, sempre influenciando o marido inescrupuloso em suas decisões profissionais, considera o dramaturgo Sérgio Roveri. "Ela trama tudo para o marido conquistar o poder", explica.


4. EM GUIMARÃES ROSA
Há uma relação entre "Rei Lear" e o conto "Nada e a Nossa Condição", do escritor mineiro, diz a atriz Giulia Gam. Ambas as histórias têm como centro um personagem velho que, na iminência da morte, começa a pensar na partilha de sua propriedade entre as filhas.


5. EM BECKETT
"Rei Lear" de novo... Muita gente já fez essa mesma relação, entre o protagonista da obra de Shakespeare e Hamm, personagem também sujeito à decrepitude e à crise diante do fim na peça "Fim de Partida", de Beckett (1906-89), como bem lembra o autor Samir Yazbek.


6. EM BATMAN
Para Claudia Shapira, diretora do grupo Bartolomeu de Depoimentos, que investiga intersecções entre teatro e arte de rua, Batman talvez tenha uma relação hamletiana com seu pai fantasma, além de usar uma "máscara da loucura" para desvendar "algo de podre".


7. NA NOVELA DAS NOVE
Félix, vilão da novela global "Amor à Vida", pode muito bem ter encarnado um Iago, de "Otelo". Ele é invejoso e "faz suas escolhas atropelando qualquer valor moral", diz Marici Salomão, dramaturga e diretora da SP Escola de Teatro. Ela também vê Shakespeare nas "aterrorizantes imagens de personalidades históricas borradas de subjetividade pelas mãos de Francis Bacon".


8. NO MOVIMENTO PUNK
O roqueiro Supla conta que assistiu a um show de Bowie em 1983, na Alemanha, em que o cantor, empunhando um crânio, proferiu a frase mais conhecida do príncipe: "To be or not to be". Também lhe vem à mente o documentário "O Lixo e a Fúria", sobre a banda Sex Pistols: em uma cena, o músico Johnny Rotten conta que contrariou um professor quando ele disse que todo mundo deveria conhecer a obra de Shakespeare.


9. NA MELANCOLIA RUSSA
A diretora carioca Christiane Jatahy associa Solioni, personagem secundário da peça "As Três Irmãs", de Tchékhov, a Lady Macbeth. "Ele passa a peça toda perfumando as mãos, quase como prenúncio do assassinato que vai cometer no final da peça, assim como Lady Macbeth as lava para tirar o sangue", compara.


10. NOS MUSICAIS
No teatro musical também há referências ao bardo. Duas das mais famosas: "West Side Story" é uma versão de "Romeu e Julieta", como lembra Claudia Shapira. E "O Rei Leão", em cartaz em São Paulo, também tem bastante da peça "Hamlet". Mesmo sendo uma obra para crianças, não dispensa a cena de um assassinato cruel, em que o rei é vítima de seu próprio irmão, tio do personagem central.
    Fonte: Folha, 16.01.2014.

Nenhum comentário:

Postar um comentário